Direito Político de Resistência

Por Dimas Macedo 11/11/2019 - 08:32 hs

O Direito Constitucional Material, de forma indiscutível, compreende o núcleo essencial no qual se concentra a temática da Constituição. Não é regido por critérios formais, mas unicamente por normas de dimensão substantiva, aí alinhando-se as normas pertinentes à estrutura do Estado, à sua forma de governo e ao reconhecimento das liberdades públicas e garantias de direitos fundamentais, individuais e coletivos.

No campo dos direitos materiais da liberdade, emerge, desde os primórdios da vida social, o princípio da Resistência Política à Opressão, exercida, esta última, por governos tirânicos e atrabiliários. Trata-se de instituição constitucional conectada com a ética, no campo específico da Política.

Não compreende apenas uma recusa ao cumprimento de deveres de caráter jurídico, mas quer significar, também, uma potência de vontade capaz de criar uma ordem jurídica transformadora, em substituição aos regimes de tirania e opressão configurados pela situação política anterior.

As suas vinculações com a Democracia e com a Soberania Popular, coloca esse princípio de viés democrático na linha de frente do Poder Constituinte, aí, pressupondo-se o exercício da legitimidade em contraposição à legalidade de matriz positivista, produzida pelo aparelho do Estado.

Enquanto princípio jurídico e filosófico, o Direito Político de Resistência foi contemporâneo dos povos da Idade Antiga, ganhou vitalidade tendo-se em vista os direitos humanos de origem cristã e, em Santo Tomás de Aquino, encontrou a sua formulação doutrinária de maior relevo. Foi restaurado pela filosofia política do liberalismo e pelos movimentos em prol da Justiça Social que tanto abalaram o século precedente.

O Direito Constitucional de Resistência sempre despertou um grande interesse, quer na área da resistência política propriamente dita, quer no plano do discurso filosófico das últimas décadas. Hannah Arendt e Norberto Bobbio, no campo internacional, e Machado Paupério e Celso Lafer, no Brasil, são exemplos de pensadores que acostaram aportes doutrinários de monta à esta discussão filosófica.

Não vou me referir, aqui, aos princípios da cidadania e da participação, à manifestação idealista de Rousseau, à manifestação realista de Hobbes, nem aos aportes da nova hermenêutica ou à filosofia do materialismo histórico e dialético, que dão um sentido doutrinário novo ao trato do assunto.

Registro, contudo, que Cláudia de Rezende Machado de Araújo, com o seu Direito Constitucional de Resistência (Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2002); Maurício Gentil Monteiro, com Direito de Resistência na Ordem Jurídica Constitucional (Rio: Renovar, 2003); e Ronald Fontenele Rocha, com Direito Democrático de Resistência (Belo Horizonte: Fórum, 2009), integram um conjunto de juristas que têm dedicado ao estudo do assunto as suas energias.

O dever de obediência, em um plano, e o direito de resistência política, alocado no extrato exatamente oposto; a liberdade do indivíduo e a autoridade do Estado; a desobediência civil e a objeção de consciência como princípios constitucionais, posicionados entre os Direitos Fundamentais de terceira geração, constituem pontos de inflexão dessa temática.

Considerando que a desobediência civil e a resistência política à opressão são princípios legitimadores do regime democrático, devem os seus pesquisadores partir de premissas filosóficas antigas e modernas, aí incluindo-se os conceitos de Lei, Direito, Justiça, Legitimidade e Ideologia.

O Direito de Resistência em face do Estado de Justiça, o Direito de Revolução, o Direito de Resistência como Direito Natural, o Direito de Resistência como Direito Fundamental e, de forma mais acentuada, o Direito de Resistência como corolário de uma Sociedade Aberta de Intérpretes da Constituição compreendem desafios temáticos para qualquer jurista ou sociólogo do Direito.

A Resistência Política à Lei Injusta e a sua Inconstitucionalidade Substancial devem, também, ser consideradas pelos pesquisadores, especialmente, porque o Direito Constitucional dos dias de hoje, vê a Constituição e a sua defesa pelo viés de uma ótica nova, antenada com a Democracia e com os Direitos Fundamentais de última geração.

A soberania popular, por seu turno, expressa-se como legitimidade e justificação do poder político do Estado. A sua usurpação, para além dos limites razoavelmente estabelecidos, implica violação constitucional inadmissível, nascendo daí os direitos fundamentais de Resistência Política.

Aspecto ainda mais contemporâneo do Direito Político de Resistência, seria o instituto da Desobediência Civil, o qual, também constitui um núcleo bastante expressivo dos Direitos Constitucionais Materiais. O ponto de partida da sua discussão, no campo da teoria política, deve-se ao livro de Henry Thoreau, justamente intitulado Desobediência Civil.

No Brasil, eu ponho em destaque os livros de Geovani Tavares, Desobediência Civil e Direito de Resistência Política (Campinas: Edicamp, 2003), e de Nelson Nery Costa, Teoria e Realidade da Desobediência Civil (Rio: Forense, 1990), os quais se expressam como vertentes teóricas significativas acerca do assunto.  Compreendem pesquisas que não se baseiam apenas na ótica política dos autores, mas nas reflexões com que olham o mundo e a cena política contemporânea.

O livro de Geovani Tavares concilia pesquisa de campo com reflexão doutrinária haurida nas melhores fontes, fazendo lembrar, neste ponto, outro texto denso da vida acadêmica brasileira: Espaço Público e Representação Política (Rio: Universidade Federal Fluminense, 2000), de Maria Arair Pinto Paiva, pesquisa na qual são discutidos, com muita segurança, assuntos da maior relevância acerca dessa temática.

As premissas teóricas da Desobediência Civil e do Direito de Resistência Política podem ser buscadas em filósofos como Montesquieu e Rousseau, Gomes Canotilho e Paulo Bonavides, e na atitude política de desobedientes célebres como Henry Thoreau, Luther King e Mahatma Gandhi.

No Brasil, devemos destacar o pioneirismo de Machado Paupério (O Direito Político de Resistência. Rio: Forense, 1978) e de Maria Garcia (Desobediência Civil – Direito Fundamental. São Paulo: RT, 1994), pensadores que deram, respectivamente, à Resistência Civil e à Desobediência Política, tratamento teórico de grande significado.

A pouca importância atribuída ao direito de resistência no paradigma da Filosofia do Direito, em vista a legitimidade da legalidade, como bem acentuou Celso Lafer, no seu livro A Reconstrução dos Direitos Humanos (São Paulo: Companhia das Letras, 1988), aponta para a questão de que a desobediência civil à lei injusta é uma das formas mais eficazes de defesa da Constituição.

Penso que a discussão desta temática aponta para o domínio do espaço público, locus privilegiado onde palavra e ação complementam-se, como quer Hannah Arendt em A Condição Humana (Rio: Forense-Universitária, 1987), e Jürgen Habermas, fundamentalmente, em Mudança Estrutural da Esfera Pública (Rio: Tempo Brasileiro, 1984).

De último, espero que a Desobediência Civil e o Direito Político de Resistência não caiam no vazio, especialmente, neste momento da história do Ocidente, no qual a Política, cada vez mais, vem se tornando uma mercadoria manipulada pelos interesses econômicos, e não um aparelho do Interesse Público e de transformação da ordem social.