Pane no Porto de Fortaleza: relatos de drogas, sumiço de contêineres e ataque hacker

Por Redação O Povo 22/08/2022 - 12:16 hs
Foto: Reprodução
Pane no Porto de Fortaleza: relatos de drogas, sumiço de contêineres e ataque hacker
Pane no Porto de Fortaleza: relatos de drogas, sumiço de contêineres e ataque hacker

O POVO - Então o Porto do Mucuripe hoje está vulnerável?

Resposta - Sim. Tanto pode sumir um contêiner como pode entrar ou sair mais facilmente um carregamento de drogas ou de outra mercadoria ilícita.

A resposta à pergunta do O POVO é dada por Pedro (nome fictício), ex-funcionário da Companhia Docas do Ceará (CDC), empresa federal que administra o Porto de Fortaleza. Ligado ao setor de logística, ele viveu a rotina do local por mais de uma década. Saiu há poucos meses.

O que o ex-servidor portuário expõe é um recorte de como estaria a atual fragilidade operacional do porto em protocolos básicos de segurança e no controle dos seus espaços e estoques.

A entrada e saída de pessoas, veículos e cargas em contêineres, que tinham o monitoramento automatizado, estariam sendo feitas manualmente ou apenas parcialmente por equipamentos eletrônicos.

Licitações emergenciais, para contratar novos dispositivos, tentaram reverter alguns dos problemas, ainda assim o quadro permaneceu.

A Receita Federal chegou a descrever o cenário como “negligência patrimonial e alfandegária” e a situação foi listada em 26 tópicos que tratavam dessa vulnerabilidade em relação à segurança do porto.

Pelo menos 30 câmeras de vigilância, o equivalente a um terço do total, chegaram a estar sem funcionar. Por meses, esse controle virtual inexistiu dentro das docas.

A história é consolidada por personagens ouvidos pelo O POVO, ex e atuais gestores e servidores portuários, algumas horas de entrevistas gravadas, muitas trocas de mensagens, documentos emitidos pelo Conselho de Administração da CDC e autos de infração emitidos pela Receita Federal.

O sumiço dos 12 contêineres no Porto

Entre vários episódios graves descritos, um dos principais é o sumiço/desaparecimento de 12 contêineres do pátio do porto, fato que gerou autuação pesada do fisco. Uma multa no valor de R$ 11,3 milhões.

E um inquérito ainda em aberto na Polícia Federal. A "conta" ainda não foi paga e é alvo de recurso pela direção da CDC. Mas há outras: de R$ 6 milhões, de R$ 180 mil, mais algumas dentro do cenário do equipamento.

Procurada, a 3ª Regional da Receita Federal em Fortaleza respondeu, em nota, que grande parte das informações apontadas diz respeito à administração portuária em si, e nesse quesito, não teria como se manifestar sobre as ações realizadas por outros órgãos; de igual forma, em relação à Polícia Federal.

"No que tange à Receita Federal, temos adotado todas as providências previstas em lei. No entanto, visando resguardar possíveis ações em curso, bem como a guarda de informações protegidas pelo sigilo fiscal, somos impedidos de divulgá-las.”

O que se sabe sobre o sumiço

O que surpreende é a sequência de fatos anteriores e posteriores ao sumiço desses contêineres. A descrição dada pelas fontes indica que uma espécie de pane generalizada no Porto do Mucuripe nos últimos três anos coincide com o imprevisto de um ataque cibernético aos servidores de dados da Companhia Docas, no fim de outubro de 2019.

Um grupo que se autodenominou “Tirana Hacker Team” derrubou todos os sistemas, comunicações e registros do equipamento. Cobrava o pagamento de “resgate” em criptomoedas para devolver os dados.

O que ampliou o dano desse ciberataque? A informática do porto estava operando à época, já havia alguns meses, sem firewall "Dispositivo de segurança de rede" e sem programas antivírus. A informação do setor de tecnologia é que a CDC estaria sem dinheiro à época para adquirir ou renovar essas barreiras digitais. Relatórios internos já teriam indicado a necessidade da compra.

Um segundo ataque hacker, poucos meses depois, teria sido ainda mais agressivo ao sistema das Docas. Mas já nem haveria tanta informação a ser “sequestrada”, segundo Pedro (nome fictício), também servidor portuário.

Àquela altura, a base de dados da empresa anterior ao primeiro ataque teria sido apagada completamente. Todo o histórico. E essa criptografia não teria sido derrubada até hoje.

Depois disso, os vários protocolos de segurança digital e presencial, tanto para movimentação e armazenagem de cargas ou até administrativos, foram sendo retomados apenas parcialmente.

Alguns nem sequer de forma incompleta. Isso teria comprometido diversas das operações portuárias. Uma das situações ameaçadas, inclusive, seria a condição de alfandegamento dada ao Porto de Fortaleza pela Receita.

Num dos vários tópicos do Termo de Constatação nº 01/2020, elaborado pela Comissão Local de Acompanhamento dos Requisitos de Alfandegamento (CLALF/FOR) da Receita Federal, é feita a cobrança da situação:

“O restabelecimento do sistema de leitura e captura automática de placas de veículos e números de contêineres, mais conhecido pela sigla inglesa OCR: constatou-se que o referido sistema continua completamente inoperante, mesmo porque deve trabalhar integrado ao sistema de controle de acesso de veículos e de movimentação de cargas”.

OCR (Optical Character Recognition), ou Reconhecimento Óptico de Caracteres, é um sistema que faz a leitura dos códigos existentes em todo contêiner, identificáveis em qualquer parte do mundo.

O trecho reproduzido acima inclusive é referente à autuação da Receita que aplicou multa de R$ 11,3 milhões à Companhia Docas pelo desaparecimento dos contêineres.

A vistoria do Termo nº 01/2020 foi feita em 24 de novembro de 2020, mas pontos do documento seguiram sendo mencionados em reuniões do Conselho de Administração da CDC ainda em junho de 2022.

Algumas atividades já voltaram completamente, mas funcionando em ambientes digitais à parte dos sistemas anteriores.Para ser mantida, a decretação de área alfandegada, feita em 8 de julho de 2019, exige rigor em diversas práticas aduaneiras.

Uma das vantagens do alfandegamento é justamente expandir o comércio feito pelo porto — importações e exportações. A CDC vem sendo autuada sistematicamente ao longo desses três anos.

Numa das reuniões mais tensas entre auditores da Receita e gestores da Companhia Docas, uma das fontes conta que os fiscais da CLALF/FOR teriam cobrado, com rispidez, a resolução dos problemas recorrentes.

“Eles chegaram a perguntar ‘qual o problema? É dinheiro? É o governo? Diga qual é o problema que a gente ajuda vocês. É licitação? Porque toda vez vocês chegam aqui, dizem uma novidade’. Eles foram bem rigorosos porque já são várias prorrogações de prazos (para resolução)”, descreve.

Investigação envolve contêineres e cocaína

As indicações dadas ao O POVO são de que o episódio do sumiço dos 12 contêineres, de dentro do Porto do Mucuripe, teria sido um furto, pelas características descritas e confirmadas por fontes policiais.

O POVO apurou que essa é a principal linha de investigação da Polícia Federal no inquérito IPL 2021.0074419. O caso está com sigilo decretado. A PF apenas confirmou a existência do processo “ainda em aberto” e não estendeu sua resposta.

A possibilidade de apenas falha nos registros de saída dos equipamentos não está descartada. Como tiraram? Quem cometeu? Quem recebeu? Quando aconteceu? Não se sabe — ou pelo menos não se divulga — se os contêineres foram levados todos numa mesma janela de tempo ou se em dias diferentes, seguidos com intervalos distantes entre um e outro momento. Cada contêiner vazio pesa de 2 toneladas (20 pés - 6 metros) a 3,5 toneladas (40 pés - 12 metros). Há duas portarias distintas nas docas por onde os contêineres podem ter saído.

Perguntas ainda não respondidas sobre os sumiços de contêineres


As circunstâncias de vulnerabilidade que teriam contribuído para o possível furto são múltiplas. Desde a vigilância cheia de pontos cegos por equipamentos sem funcionar ao acesso de pessoas e veículos e o controle de cargas comprometidos, com apontamentos a mão desde o ataque hacker de outubro de 2019.

O silêncio estratégico da PF também estaria associado a outra investigação simultânea: a chegada e a saída de drogas pelo mar de Fortaleza.

Mais precisamente, cocaína para países da Europa e África. Pelo menos seis dessas cargas do pó, camufladas em grandes volumes a serem exportados, foram detectadas nesse período de três anos de crise nos procedimentos de controle e segurança.

Essas eram destinadas ao continente europeu, mas países africanos também aparecem no percurso.

No caso, a cocaína no Mucuripe foi detectada entre cargas de mangas, limões, duas com algas e até dentro do motor de um contêiner refrigerado (Reefer).

As interceptações em Fortaleza aconteceram a partir de denúncias e em vistorias rotineiras. Uma fonte que atua no pátio do porto contou que os fiscais da Receita já chegaram a abrir mais de 80 contêineres para checar as ameaças do tráfico à zona portuária.

O último lote de cocaína apreendido no porto em Fortaleza foi no dia 14 de dezembro do ano passado. Estava escondida numa carga de quase uma tonelada de alga marinha em pó, mas um terço desse peso era da droga — avaliada pelos policiais em cerca de R$ 250 milhões.

Saiba detalhes de investigação da Polícia Federal no Porto de Fortaleza

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Um comunicado enviado pelo Porto de Roterdã, nos Países Baixos, à Superintendência local da Receita, é citado em uma das autuações feitas à Companhia Docas.

O documento (Termo de Constatação, Renotificação e Intimação CLALF/FOR nº 011/02/19/01/2020) confirma que pelo menos três contêineres foram interceptados com cocaína embarcada para o país europeu a partir do Porto de Fortaleza. Cada um com pelo menos 300 kg de droga.

A PF já trabalha no caso dos 12 contêineres há mais de um ano e informou que nada pode ser contado. O inquérito está vinculado à Delegacia Regional de Investigação e Combate ao Crime Organizado (DRCOR) e à Delegacia de Repressão a Crimes Fazendários (Delefaz).

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A presidente da Companhia Docas, engenheira Mayhara Chaves, foi intimada e já prestou depoimento ao inquérito. Alguns servidores portuários também foram chamados pela Polícia Federal para prestar esclarecimentos sobre o caso.

Até a data exata em que os equipamentos foram levados na surdina é incerta dentro do equipamento. As caixas, modelo Dry, de 20 e 40 pés, teriam saído pelo portão da frente das Docas, provavelmente entre a penúltima e a última semana de setembro de 2021.

Houve informações de que pudessem ter saído até antes, entre abril e maio do mesmo ano.

“Um funcionário tem uma foto de um dos contêineres com a porta aberta, de maio de 2020 (ano anterior), ainda no pátio”, disse um dos servidores ouvidos, sob a garantia do anonimato.

Esse funcionário com o registro de um dos contêineres levados foi procurado pelo O POVO, por meio de um intermediário, mas preferiu não dar entrevista nem ceder a “última” foto do equipamento.

Secultfor diz ter recebido mercadoria doada

O sumiço em si dos 12 contêineres do pátio do porto do Mucuripe não é o único momento inusitado deste caso. Não fosse a história já surpreendente, a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) confirmou ter recebido toda a mercadoria doada pela Receita Federal que estava dentro dos equipamentos.

Os contêineres guardavam mercadorias apreendidas entre 2008 e 2009, pela Receita, avaliadas em R$ 3 milhões. Mais de 28 mil itens, principalmente confecções, produtos de palha, sintéticos e tapetes. Estavam indicados como produtos de contrabando. A origem principal seria a China.

“A Secultfor informa que recebeu doações de produtos fornecidos pela Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil – 3ª Região Fiscal no ano de 2021, como tapetes, roupas, mochilas, bolsas, entre outros itens, que foram repassados para segmentos e entidades relacionados à cultura, educação e direitos humanos”, explicou o órgão municipal, em nota enviada ao O POVO.

E complementou: “Foram beneficiadas organizações e instituições de todas as Regionais da Capital, visando contemplar pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade. Ainda há material restante armazenado em almoxarifado aguardando distribuição.”

O POVO apurou que os contemplados foram grupos artísticos diversos, agremiações carnavalescas, como grupos de maracatu, e pessoas em situação de rua da Capital.

Outra informação levantada, entre quem chegou a tratar da doação, é de que a Receita teria indicado antes que a carga a ser cedida seria maior.

Mas, no tempo entre a notícia da oferta e a confirmação para transferir, o órgão federal teria diminuído essa quantidade. A Receita não quis se manifestar e disse, também em nota, que prefere resguardar as informações sobre o caso.

Datas de “Entreguei” e “Recebi” não batem

Pelo Ato de Destinação de Mercadorias (ADM-ofício nº 0637/2021), da 3ª Regional da Receita Federal, além do conteúdo dos contêineres que saíram para a doação, é possível ter uma referência de quando os 12 “desaparecidos” teriam sido levados de dentro do Porto do Mucuripe. Mas é um indício, não uma certeza.

Porque há uma divergência de datas e acontecimentos registrados entre o "Entreguei", o "Recebi" e a constatação de os contêineres terem saído do radar. E o porto, naquele período, operava manualmente a entrada e saída de mercadorias, pessoas e veículos.

O ADM, de 11/8/2021, confirma o repasse da carga à Secultfor como beneficiária da doação, assinado digitalmente pelo então superintendente-adjunto regional da Receita, Eudimar Alves Ferreira.

Num registro feito a mão, o técnico portuário F.E.S.F atesta no campo "Procedi a entrega das mercadorias". A data é anotada como 30/9/2021. E ao lado, no campo "Recebi", o ato é confirmado pelo próprio titular da Secultfor, Elpídio Nogueira.

A descoberta do furto/sumiço dos 12 equipamentos, porém, acontece no dia 22 de setembro, uma semana antes da assinatura da liberação.

Sugere que uma carga além dos contêineres sumidos pode ter sido a que foi entregue. O POVO não conseguiu contato com o servidor que assina a entrega da doação à Secultfor. Opta por preservar sua identidade.

Todo o trabalho é feito manualmente

Coincidência ou não, em 24/9/2021, dois dias depois do sumiço constatado dos contêineres (22/9/2021), a Receita Federal enviou novo e-mail à Companhia Docas cobrando “imediato restabelecimento do sistema OCR”.

O equipamento faz a leitura dos códigos dos contêineres e controla automaticamente a movimentação de cargas dentro do porto.

As notificações sobre a falta do OCR teriam começado desde os dias seguintes ao episódio do ataque hacker, registrado em outubro de 2019.

Desde a invasão ao sistema, esse controle chegou a ser feito por alguns meses por uma empresa contratada por licitação emergencial, mas que não teria alcançado o índice de assertividade exigido de 90% a 95%.

Teria chegado perto dos 30%, conforme uma fonte que acompanhou diretamente o caso e contou ao O POVO. E o que deveria ser automatizado, com informações on-line, tem sido feito nesse tempo apenas manualmente.

O sumiço dos contêineres em setembro de 2021 teve destaque na pauta das duas reuniões seguintes do Conselho de Administração (Consad) da Companhia Docas, em outubro e novembro.

Na primeira reunião deste ano, o Consad “recomendou a instauração de sindicância para apurar eventuais responsabilidades sobre o desaparecimento de contêineres do pátio da CDC”.

A medida foi acatada, mas não há informação sobre prazos. O assunto voltou a ser cobrado nas reuniões seguintes.

Situação do Porto chega à Câmara Federal

O caso do sumiço dos 12 contêineres, além das falhas operacionais em protocolos de segurança e logística do Porto de Fortaleza chegaram aos ouvidos da Câmara Federal.

O deputado federal Hildo Rocha (MDB-MA) apresentou requerimento à Comissão de Viação e Transportes (CVT) da Casa pedindo audiência pública para tratar do cenário de negligência com a segurança patrimonial e alfandegária.

O requerimento nº 41/2022 seria votado no último dia 3 de agosto, mas a sessão da Comissão acabou adiada — ainda não foi reagendada.

A presidente da Companhia Docas do Ceará (CDC), Mayhara Chaves, deverá ser convocada para a audiência. Outro gestor do órgão que deverá ser chamado é o diretor de infraestrutura e gestão portuária, Eduardo Martini Rodriguez.

Também deverão ser convocados o responsável pela Alfândega no Porto do Mucuripe, Carlos Wilson Albuquerque, auditor fiscal da Receita; e o membro do Conselho de Administração da Companhia Docas (Consad-CDC), Carlos Murilo Pires, que tem denunciado a situação do porto durante reuniões do próprio Consad.

Um requerimento complementar (nº 43/2022) foi apresentado pelo deputado federal Gonzaga Patriota (PSB-PE).

Ele sugere a convocação de mais dois nomes para ajudar a entender o cenário de vulnerabilidade no porto: um analista portuário que atuou como coordenador de tecnologia da informação e um representante da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).

"Soubemos por terceiros", diz empresa dos contêineres furtados


Passados quase 11 meses desde que os 12 contêineres foram levados do porto do Mucuripe, em Fortaleza, nenhum deles voltou a ser registrado em portos pelo Brasil ou pelo mundo. A informação é de Juliana Borean, diretora regional da Hand Line Transportes Internacionais.

A empresa é a responsável pelos contêineres vazios. Os 12 haviam sido locados junto à empresa Real Reefer, a proprietária de fato dos equipamentos.

"Só os contêineres eram nossos. A mercadoria, a Hand Line não tem nada a ver com ela", detalha a diretora ao O POVO. No jargão portuário, respondem pela "lata". A empresa tem matriz em São Paulo e não possui escritório em Fortaleza.


A diretora confirma que a Hand Line nem chegou a ser avisada diretamente pela Companhia Docas do Ceará (CDC) logo que o sumiço dos equipamentos foi constatado.

"Na verdade, nem foi o terminal que informou. A gente ficou sabendo por terceiros, foi atrás e soube que não estavam mais lá", descreveu.

O POVO teve acesso a um ofício da Hand Line repassado à Companhia Docas às 19h13min do dia 24/9/2021, dois dias depois do desaparecimento ter sido anunciado.

"Pedimos urgência na localização das unidades e o histórico do ocorrido para tomarmos as devidas providências".

Quatro dias depois, em ofício do dia 28/9/2021, a Companhia Docas responde ao lado da numeração de 11 dos contêineres: “Situação - unidade não encontrada”.

A informação só foi diferente para um deles - “Situação - não consta BCO (Boletim de Controle de Operação”). Outra resposta que não negava o desaparecimento.

“Já comunicamos o fato à Polícia Federal e à Receita Federal do Brasil e estamos colaborando com as entidades intervenientes para que todos os fatos sejam esclarecidos”, informou o ofício à época, assinado pela diretora-presidente da Companhia Docas do Ceará, Mayhara Chaves.

Por estarem dentro da área alfandegada, a responsável direta pela proteção dos contêineres é a Companhia Docas.

Após essa troca de mensagens, a empresa Hand Line chegou a enviar emissário de São Paulo até Fortaleza para se inteirar do ocorrido, mas os esclarecimentos não avançaram. O encontro foi com um diretor da CDC.

"Simplesmente disseram que tinha sumido e que tínhamos que aguardar investigação. E isso até hoje está dessa forma. Não tem nenhum retorno de ninguém, ninguém fala sobre o assunto", argumenta.

Quando solicitaram imagens de câmeras do circuito interno, o porto admitiu ter havido uma pane nas filmagens - ainda consequência do ataque hacker sofrido dois anos antes - em outubro de 2019.

A Polícia Federal conduz inquérito sigiloso. A investigação trabalha a hipótese de furto ou falha em registro de saída.

Vazio, cada contêiner vale US$ 7 mil

Juliana Borean, da Hand Line Transportes Internacionais, confirma que a Hand Line entrou com uma ação judicial para cobrar o ressarcimento. A situação estaria gerando um custo mensal de aluguel. "A gente está aguardando até hoje e o caso está com nosso departamento jurídico".

Pelo valor atual de mercado, cada equipamento hoje está avaliado em US$ 7 mil (acima dos R$ 36 mil, na cotação média). "A gente tem um contrato informando que cada contêiner que sumiu a gente tem uma responsabilidade de R$ 18 mil", informa. Todos eram do modelo Dry de 40 pés (12 metros).

A diretora se mostrou surpresa ao tomar conhecimento, pelo O POVO, que a doação de 28 mil itens (tapetes e confecções trazidos da China) havia sido feita para a Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor).

"Essa informação pra mim é nova". A mercadoria chegou a ser especulada como a que estaria nos 12 contêineres. "Essa quantidade caberia em um ou dois contêineres no máximo", finaliza.

Segundo ela, a Docas informou que todos estavam carregados. Era sabido pela empresa paulista que a carga acondicionada era de apreensão por contrabando e que iria para leilão ou doação.

Resposta do Porto de Fortaleza ao O POVO

O POVO procurou a Companhia Docas do Ceará (CDC) em 11 de agosto, quando pediu uma entrevista presencial com a diretora-presidente Mahyara Chaves.

O contato foi feito com o coordenador de Marketing da CDC, Gilson Galvão, pois a Companhia está há mais de dois meses sem alguém à frente da Coordenadoria de Comunicação, que é responsável pela assessoria de imprensa.

Nos dias seguintes, O POVO voltou a entrar em contato insistindo em uma entrevista presencial, afinal, a diretora-presidente é citada como responsável pela maioria das falhas apontadas pelas fontes e é direito dela responder às questões.

Por e-mail, foi informado ao coordenador a respeito das denúncias envolvendo a gestão do Porto do Mucuripe sobre os assuntos abordados neste episódio:

  1. Sumiço dos contêineres do Porto de Fortaleza
  2. Segurança comprometida pela falta de OCR e partes das câmeras sem funcionar
  3. Sucateamento dos equipamentos, como as defesas, comprometendo a segurança e a operação

Mas o retorno só foi dado em 17 de agosto, com o seguinte texto:

Ataque hacker partiu de grupo da Romênia chamado THT

Os responsáveis pela invasão cibernética à Companhia Docas do Ceará, que derrubou o funcionamento do Porto de Fortaleza na manhã do dia 28 de outubro de 2019, são de um grupo autodenominado "Tirana Hacker Team". É originário da Romênia.

Para o ataque foi usado um ransonware "Tipo de programa malicioso com a finalidade de sequestrar dados de corporações e empresas públicas, de forma a cobrar caro para devolvê-los." chamado de THT. É considerado dos mais agressivos. No caso, queriam o pagamento de resgate em moedas digitais (bitcoins) para liberarem a criptografia do sistema. Cobraram por e-mail.

Agentes da Polícia Federal chegaram a estar no porto antes da instauração do inquérito, ainda no próprio dia da invasão.

Com o código criptografado inserido no sistema, todo o controle operacional — segurança de cargas, monitoramento de contêineres e acessos individuais e veiculares, serviço administrativo e financeiro —, foi bloqueado.

Não foi um ataque dirigido ao Porto do Mucuripe. Naquela mesma segunda-feira, cedo da manhã, a Prefeitura de Barrinhas, no Interior de São Paulo, passava pelo mesmo apuro.

Em 2018, o Porto de Natal, dirigido pela Companhia Docas do Rio Grande do Norte (Codern), havia sofrido quatro tentativas de invasão semelhantes.

E O POVO apurou que a Companhia Docas do Ceará, mesmo avisada da ocorrência em Natal no ano anterior, ainda não havia renovado suas barreiras virtuais.

Seguia sem firewall nem antivírus nos seus sistemas. Não teria comprado à época por falta de recursos. Um relatório interno teria apontado risco iminente.


Apesar desse detalhamento, a Polícia Federal não conseguiu chegar à autoria específica do crime. O Laboratório de Inteligência Cibernética do Ministério da Justiça e o órgão de combate a delitos desse tipo na PF também não alcançaram os invasores.

Após pouco mais de dez meses de investigação (333 dias, entre 13/9/2019 e 11/8/2020), a decisão tomada foi arquivar o inquérito (IPL 2019.0009416) com o que se tinha.

O Ministério Público Federal deu parecer pelo encerramento da busca e o juiz da 32ª Vara Federal, Francisco Luis Rios Alves, concordou.

“Ressalvada a possibilidade de seu desarquivamento, caso surjam novos elementos de prova”, destacou o magistrado. Quase três anos depois, nenhuma pista nova apareceu.

As sequelas operacionais por conta do ataque hacker continuam até hoje, segundo a descrição de fontes e documentos oficiais obtidos pelo O POVO.

Naquele dia, o Porto de Fortaleza parou totalmente por pelo menos uma hora e, quando voltou, toda a operação só foi possível manualmente. A reposição tecnológica aconteceu parcialmente em vários procedimentos e equipamentos.

Um dos principais, a OCR (Reconhecimento Óptico de Caracteres, da sigla em inglês), aparelhagem usada para identificação de contêineres, só chegou a ser retomada sete meses depois do primeiro ataque, em maio. Em 15 de junho de 2020, houve uma segunda invasão.

“Esse foi muito pior que o primeiro. Porque afetou todos os computadores, o anterior foi só ao servidor. Quem usava a rede das Docas foi invadido, incluindo dados pessoais, e-mail, tudo”, descreve uma fonte.

Teriam sido os mesmos hackers, mas nesse já não tiveram tanta informação para ser “sequestrada”. O que era imprescindível já estava protegido em drivers. Até hoje a criptografia não teria sido derrubada.

A OCR voltou à inoperância depois que uma empresa, contratada emergencialmente, não conseguiu atingir índices de assertividade exigidos (90% a 95%) e o contrato foi desfeito. Essa empresa obteve uma liminar e, hoje, a Docas estaria impedida de contratar uma substituta para assumir o serviço.

A descrição dada por um gestor das Docas, que pede anonimato: "De outubro de 2019 para trás se perdeu tudo. Dados sigilosos e de LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) levaram tudo. A história anterior das Docas não existe mais. Só do ataque pra cá".

E, ao final de 2020, mais de um ano após o ataque hacker, só 23% dos sistemas haviam sido restabelecidos.

Após 2021, o índice só alcançou 51%, conforme o próprio Relatório de Gestão 2021 da Companhia Docas do Ceará.

O que indica que praticamente a metade dos protocolos e sistemas dependentes de tecnologia dentro do porto seguem manualizados ou ativados parcialmente.

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