'Nunca foi arrochado desse jeito': corte de verba deixa famílias sem água

Por Valcidney Soares 26/12/2022 - 09:26 hs
Foto: Valcidney Soares/UOL
'Nunca foi arrochado desse jeito': corte de verba deixa famílias sem água
Fca. Ivanete dos Santos Silva, a Neném, e o marido, Fco.: 'agora na seca não temos nada'

Desde que o governo Jair Bolsonaro cortou a verba destinada à OCP (Operação Carro-Pipa), no início de novembro, moradores das zonas rurais do Nordeste vivem de doações para continuar a ter água em suas casas. O primeiro corte ocorreu logo após o segundo turno das eleições presidenciais, afetando mais de 1,6 milhão de pessoas em oito estados da região. Com a repercussão negativa, o governo liberou R$ 21,4 milhões ao MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) para tentar normalizar a operação. Mas em dezembro, no apagar das luzes da gestão Bolsonaro, outro corte deixou novamente a região sem água.

Em Santa Cruz (RN), cidade a 117 km de Natal, são 3.677 as pessoas beneficiárias do programa e 12 pipeiros — segundo informações da plataforma do Exército Brasileiro que coordena a operação. Embora a situação no município conste como "em execução" na plataforma, famílias da zona rural não viram até agora a situação se regularizar.

Banho com água salgada

"O que a gente está sabendo é que cortou de vez", diz a agricultora Júlia Maria Avelino, 58, do Sítio Araruá, na zona rural do município. Assim como ela, outras 16 famílias da comunidade sentem os efeitos da falta de água. Segundo os moradores, em dezembro é comum que haja uma diminuição do abastecimento pelo Exército, mas nada como está ocorrendo este ano.

As famílias contam que, em geral, os pipeiros visitam os sítios de três a quatro vezes por mês. Em dezembro, porém, houve um único abastecimento até o domingo (18). Cada família tem direito a 20 litros de água por pessoa ao dia. A água da OCP serve principalmente para beber, cozinhar e fazer a higiene pessoal. Como têm que economizar, o banho é feito muitas vezes com água salgada retirada de poços, ainda que não seja a ideal.

A reportagem do TAB esteve no Sítio Araruá no domingo (18). Naquele dia, Júlia esperava a chegada do seu filho, que trabalha como pedreiro em Santa Catarina e voltava de ônibus para visitar a família. A preocupação da dona de casa era como iria recebê-lo.

"Tô esperando ele chegar, mas pensando que não tem água pra tomar banho. Tem água salgada, mas não presta nem pra isso", disse. Na cisterna da família, apenas uma quantidade rasa de água, insuficiente para as tarefas diárias. "Está com um pouquinho porque não pode deixar secar de vez, senão racha todinha e a água vai embora", explica ela. "Já chegou dia de não ter água nem pra fazer o café."

'Na seca não temos nada'

Em todo o Rio Grande do Norte, segundo o site do Exército, são 56.593 pessoas atendidas por 167 pipeiros em 41 municípios. O programa atende os oito estados do Nordeste, além de Minas Gerais, mas os dados deste estado e de Alagoas não estão disponíveis. Ao todo, os beneficiários chegam a 1.038.122 pessoas em 240 municípios.

Francisca Ivanete dos Santos Silva, 50, conhecida como "Neném", recebe ajuda da gestão municipal. "A gente pede água na prefeitura, aí eles mandam pipa d'água, às vezes pra duas cisternas. E é assim que a gente está se virando". A agricultora vive do auxílio de R$ 600 que recebe mensalmente e o marido, Francisco de Assis da Silva, faz bicos de corte de terra, montagem de cercas e construções de curral para completar o orçamento. O dinheiro é insuficiente para que contratem um carro-pipa particular.

"Pra comprar com o nosso próprio dinheiro é difícil, porque quem é agricultor mesmo vive da agricultura, e na agricultura no inverno nós temos alguma coisa, mas agora na seca não temos nada", lamenta Neném.

"Aí o que você arruma, alguma besteirinha, vai ser pra comprar alimento. Pra comprar água já fica mais difícil. Porque a água, se a gente for usar mesmo, não dá pra dois meses um carro pipa". O valor de um carro-pipa, conta ela, passa de R$ 200.

Baldes e caridade

No sítio Araruá, o abastecimento do carro-pipa preenche apenas a cisterna da família da aposentada Terezinha Bezerra de Sousa Dias, 62, com capacidade para 50 mil litros. Quando tem água, as demais famílias têm de retirar os litros a que têm direito usando baldes. A aposentada explica como está se virando neste momento: "Tem gente que vai pra rua [zona urbana] e traz balde, outros ainda tem uma coisinha na cisterna e estão bebendo. Mas nessa semana vai acabar tudo", lamenta ela.

"Faltar como tá faltando agora é a primeira vez. A gente sempre tinha esse recesso do Exército no final do ano, mas ainda vinha. Agora parou mesmo e não tem mais. Nunca foi arrochado desse jeito", diz Terezinha.

Seu vizinho, o agricultor Francisco Paulo, 62, concorda. Ele conta que a família tem tido que recorrer a doações: "Quando uma pessoa arruma uma carrada d'água, a gente vai lá e pega pra beber". No inverno, Francisco costuma plantar milho, feijão e outros cereais e leguminosas. Agora, mantém apenas sua pequena criação de gado.

Naquele domingo de sol forte, agricultores filiados ao Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar se reuniram na sede da entidade para discutir o problema e outras pautas relativas à categoria. Tesoureira do sindicato e moradora do Araruá, Cleoneide Alves, 40, se disse indignada com a situação. "Me revolta como ser humano, como mulher, como trabalhadora rural que sou."

'Recursos adicionais'

A reportagem buscou o Ministério da Economia para saber a razão do novo corte na OCP em dezembro, após o remanejamento feito no final de novembro. A pasta encaminhou a demanda para o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), que informou "que trabalha para assegurar a continuidade da Operação Carro Pipa". Na nota, o órgão afirma que a "necessidade de recursos adicionais foi formalmente comunicada ao Ministério da Economia e o MDR aguarda decisão da Junta de Execução Orçamentária (JEO), que deverá se reunir para deliberar sobre o assunto".

O Exército também foi consultado sobre a interrupção do fornecimento em Santa Cruz, que consta no site do programa como "em execução". Não houve resposta até o fechamento desta edição.